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Trinta anos após o colapso da URSS, a Rússia ainda é percebida como inimigo. Em meio a tensões crescentes entre o Kremlin e o Ocidente, o espectro de uma guerra acidental ronda a Europa. O pivô, desta vez, é a Ucrânia. Para quem assistiu à disputa por esferas de influência no mundo bipolar do século XX, tudo tem cheiro de Guerra Fria. Por sinal, foi ali que nasceu esta crise cujos desdobramentos poucos se arriscam a prever. Nem mesmo os analistas mais experimentados.
— Tudo pode acontecer. É compreensível que [o presidente americano Joe] Biden e o [líder ucraniano Volodymyr] Zelensky se preparem para uma guerra. Estão no seu papel. Mas o conflito não é inevitável. Nem extremamente provável. Aliás, nem uma guerra nem o completo distensionamento são prováveis — disse ao GLOBO o diretor do Instituto de Rússia do King’s College London, Samuel Greene.
Recentemente, um dos maiores nomes das fileiras militares britânicas, o general de quatro estrelas Nick Carter, disse à Times Radio que a tensão é tal que o risco de um erro de cálculo com capacidade de desencadear uma guerra acidental é maior do que em qualquer momento do período da Guerra Fria. Autor de vários livros sobre política externa e interna russas, Greene, que esteve baseado em Moscou por 13 anos, admite que o mundo não está a muitos passos de distância de um conflito de fato. Contudo, nada que se compare à Crise dos Mísseis de Cuba em 1962. Para o especialista, a situação atual não tem como ser resolvida nas próximas semanas ou meses, mas em anos.
Uma saída terá de revisitar as raízes do problema, que remontam ao período que vai desde o fim da Segunda Guerra Mundial até o desmantelamento da União Soviética. E a composição da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), criada em 1949 para proteger seus 16 integrantes da antiga URSS, é questão-chave.
Em artigo que escreveu em junho do ano passado, o presidente russo, Vladimir Putin voltou a falar em uma “nova Yalta”, em referência à conferência que reuniu, em 1945, o líder soviético, Josef Stálin, o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e o presidente americano, Franklin Roosevelt, e determinou que o Leste Europeu era esfera de influência da URSS. A alusão é astuta, pois menciona Yalta, cidade balneária da Crimeia preferida dos soviéticos, que desde 2014 foi anexada à Rússia, e o fim do conflito do qual eles e os americanos emergiriam como superpotências.
Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, o ponto a que se chegou hoje não é culpa exclusiva da Rússia, ou das ambições de Putin. Os líderes ocidentais teriam deixado o maior país do mundo fora da Europa do pós-guerra. E a Otan, que se imaginava sem um propósito após o fim da Guerra Fria, passou a contar com 30 associados, cada vez mais próxima da fronteira russa. Putin reitera que seu país foi enganado com a promessa de que isso não aconteceria. A Otan, por sua vez, nega qualquer promessa, como reafirma até em sua página na internet.
A relação entre russos e o Ocidente vive seu pior momento desde a Guerra Fria. Seria fonte inesgotável de enredos eletrizantes para novos livros dos britânicos Ian Fleming e John Le Carré. O noticiário dos últimos meses tem de espionagem mútua — com expulsão de diplomatas de lado a lado — a assassinatos, ameaças declaradas, ou não, intrigas e até movimentações de soldados e equipamentos. Aeronaves britânicas escoltaram dois caças russos que faziam manobras nos céus da Escócia há dois meses.